Caras

A foto está na Folha de segunda-feira: o jovem eleitor se abraça a Dilma Rousseff, cola o rosto ao dela e, com o celular na mão direita, imortaliza seu encontro com a candidata de sua predileção. O garoto tem uma expressão nirvânica, de quem guardará aquele momento para o resto da vida. A candidata, ao contrário, parece estar no piloto automático ou pensando na morte da bezerra – pela expressão levemente aporrinhada, dá a entender que apenas se submete a um ritual inevitável.

E deve ser isso mesmo. Numa estimativa conservadora, cenas como aquela se repetem pelo menos cem vezes por dia para Dilma. Os políticos de verdade estão habituados – não apenas fingem ter prazer nesse rela-rela como fazem cada eleitor se achar especial. É uma arte. Mas Dilma não é política, não tem a manha. Ao se deixar fotografar com um bebê no colo, parece temer que o fedelho lhe faça xixi no terno.

No debate de domingo, pela Band, ela e seu adversário José Serra mimosearam-se com acusações que, até que enfim, começaram a tirar a disputa da quase letal catalepsia que a tem caracterizado. (Eu próprio, ao assistir ao debate anterior, último do primeiro turno, entrei num estado próximo do “rigor mortis”.) Não que tais acusações produzam resultado – como nenhuma delas é desmentida e todas soam como verdadeiras, acabam se cancelando umas às outras.

Desta vez, Serra acusou Dilma de ter “duas caras”, referindo-se a suas opiniões sobre aborto, religião etc., que variam de acordo com o vento. Dilma devolveu o insulto, só que multiplicado: pelo mesmo motivo, Serra seria um homem de “mil caras” – nenhuma alusão ao astro do cinema mudo americano Lon Chaney, de quem ela nunca deve ter ouvido falar.

As acusações são injustas. Se Dilma tivesse duas caras, e Serra, mil, por que usariam as que ostentam em público?

Coluna do jornalista e escritor Ruy Castro publicada no jornal Folha de São Paulo de quarta-feira, 13 de outubro de 2010.

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